Profunda reflexão de Hippolit, personagem de Dostoievski no livro "O Idiota", sobre um quadro que viu o quadro "Cristo Morto", de Hans Holbein, o Jovem. Me fez pensar em Isaías 53 e nos sentimentos dos seus seguidores quando seu Mestre morreu:
No quadro de Rogójin não há uma só palavra sobre a beleza; ali está, na forma plena, o corpo de um homem que, ainda antes de ser levado à cruz, sofreu infinitos suplícios, ferimentos, torturas e espancamento por parte da guarda, espancamento por parte do povo quando carregava a cruz e caiu debaixo dela e, por último, o suplício da cruz ao longo das seis horas (pelo menos de acordo com os meus cálculos).
Na verdade, é o rosto de um homem que acaba de ser retirado da cruz, isto é, que conservou muita coisa viva, afetuosa; ainda não houvera tempo para enrijecer nada, de tal forma que no rosto do morto ainda aparecia o sofrimento, como se ele continuasse a senti-lo (o artista captou isso muito bem); mas, por outro lado, o rosto não foi minimamente poupado; ali está apenas a natureza, e em verdade assim deve ser o cadáver de um homem, seja lá quem for, depois de semelhantes suplícios.
Eu sei que a Igreja cristã já estabeleceu desde os primeiros séculos que Cristo não sofreu de maneira figurada, mas real e que, por conseguinte, o seu corpo na cruz foi subordinado à lei da natureza de forma plena e absoluta.
No quadro esse rosto está horrivelmente fraturado pelos golpes, inchado, com esquimoses terríveis, inchadas e ensanguentadas, os olhos abertos, as pupilas esguelhadas; as escleróticas graúdas e abertas irradiam um brilho mortiço, vítreo.
Todavia, coisa estranha; quando se olha para esse cadáver do homem supliciado, surge uma pergunta especial e curiosa: se esse cadáver fosse visto exatamente assim (e sem falta ele devia ser exatamente assim) por todos os seus discípulos, por seus principais e futuros apóstolos, pelas mulheres que o seguiam e estavam ao pé da cruz, por todos os que nele acreditavam e adoravam, estes, ao olharem para esse cadáver, como poderiam acreditar que esse mártir iria ressuscitar?
Aí vem involuntariamente a ideia de que, se a morte é tão terrível e as leis da natureza são tão fortes, como superá-las? Como superá-las se agora elas não foram vencidas nem por aquele que em vida vencia até a natureza, a quem subordinava, aquele que exclamou: 'Talita cumi' - e a menina se levantou, 'Lázaro, vem para fora' - e o morto não saiu?
Quando se olha esse quadro, a natureza nos aparece com a visão de um monstro imenso, implacável e surdo ou, mais certo, é bem mais certo dizer, mesmo sendo também estranho - na forma de alguma máquina gigantesca de construção moderna, que de modo absurdo agarrou, moeu e sorveu, de forma abafada e insensível, um ser grandioso e inestimável - um ser que sozinho valia toda a natureza e todas as suas leis, toda a terra, que possivelmente fora criada unicamente para o aparecimento dele!
É como se esse quadro exprimisse precisamente esse conceito de força obscura, insolente, absurda e eterna, à qual tudo está subordinado e é transmitido involuntariamente a você.
Aquelas pessoas que rodeavam o morto, das quais não há nenhuma no quadro, devem ter experimentado uma terrível nostalgia e perturbação naquela noite que lhes devorou de uma vez todas as suas esperanças e quase todas as crenças. Todas devem ter-se afastado no mais terrível pavor, ainda que cada uma levasse consigo um pensamento íntimo, que delas nunca mais poderia ser arrancado."
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